segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

O peso e a leveza

Na última publicação, mencionei A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera. É um romance que narra a existência de quatro pessoas tendo como pano de fundo a invasão russa da antiga Tcheco-Eslováquia e a dureza do regime comunista lá imposto. Pensei mais sobre este livro, porque ele começa falando justamente de Nietzsche para fundamentar a oposição entre leveza e peso que permeia todo o romance. Eis o início:

O eterno retorno é uma idéia misteriosa, e Nietzsche, com essa idéia, colocou muitos filósofos em dificuldade: pensar que um dia tudo vai se repetir tal como foi vivido e que essa repetição ainda vai se repetir indefinidamente! O que significa esse mito insensato?
O mito do eterno retorno nos diz, por negação, que a vida vai desaparecer de uma vez por todas, e que não mais voltará, é semelhante a uma sombra, que ela é sem peso, que está morta desde hoje, e que, por mais atroz, mais bela, mais esplêndida que seja, essa beleza, esse horror, esse esplendor, não têm o menor sentido. Essa vida não deve ser considerada mais importante do que uma guerra entre dois reinos africanos do século XIV, que não alterou em nada a face do mundo, embora trezentos mil negros tenham encontrado nela a morte através de indescritíveis suplícios.
Será que essa guerra entre dois reinos africanos do século XIV se modifica pelo fato de se repetir um número incalculável de vezes no eterno retorno?
(...)
Se cada segundo de nossa vida deve se repetir um número infinito de vezes, estamos pregados na eternidade como Cristo na cruz. Que idéia atroz! No mundo do eterno retorno, cada gesto carrega o peso de uma insustentável leveza. Isso é o que fazia com Nietzsche dissesse que a idéia do eterno retorno é o mais pesado dos fardos.
Se o eterno retorno é o mais pesado dos fardos, nossas vidas, sobre esse pano de fundo, podem aparecer em toda a sua esplêndida leveza.
Mas, na verdade, será atroz o peso e bela a leveza?
O mais pesado fardo nos amarga, nos faz dobrar sob ele, nos esmaga contra o chão. Na poesia amorosa de todos os séculos, porém, a mulher deseja receber o peso do corpo masculino. O fardo mais pesado é, portanto, ao mesmo tempo a imagem da mais intensa realização vital. Quanto mais pesado o fardo, mais próxima da terra está nossa vida, e mais ela é real e verdadeira.
Por outro lado, a ausência total de fardo faz com que o ser humano se torne mais leve do que o ar, com que ele voe, se distancie da terra, do ser terrestre, faz com que ele se torne semi-real, que seus movimentos sejam tão livres quanto insignificantes.
Então, o que escolher? O peso ou a leveza?
Foi a pergunta que Parmênides fez a si mesmo no século VI antes de Cristo. Segundo ele, o universo está dividido em duplas de contrários: a luz e a obscuridade, o grosso e o fino, o quente e o frio, o ser e o não-ser. Ele considerava que um dos pólos da contradição é positivo (o claro, o quente, o fino, o ser), o outro, negativo. Essa divisão em pólos positivo e negativo pode nos parecer de uma facilidade pueril. Menos em um dos casos: o que é positivo, o peso ou a leveza?
Parmênides respondia: o leve é positivo, o pesado negativo. Teria ou não razão: Essa é a questão. Uma coisa é certa. A contradição pesado-leve é a mais misteriosa e a mais ambígua de todas as contradições.

Nenhum comentário: