terça-feira, 10 de junho de 2008

Os casos da vara

“O caso da vara” é um conto de Machado de Assis que narra a fuga do seminário de Damião e seu pedido de auxílio à Sinhá Rita, amiga de seu padrinho. Todo o episódio se passa em um dia na sala de Sinhá, que se dedica a ensinar renda e bordado a criadas negras. Assegurada a intercessão da mulher junto ao padrinho, dá-se um momento de descontração e Damião põe-se a contar anedotas que fazem rir à pequena Lucrécia, criando simpatia e promessa íntima de apadrinhamento por parte do moço. Ao final do dia, não tendo terminado seu trabalho, a menina é duramente castigada por Sinhá, que pede a Damião que lhe passe a vara. Dividido entre a promessa e o dever da gratidão, Damião entrega a vara.
O filme “Quanto vale ou é por quilo?”, do diretor Sérgio Bianchi, é inspirado em “Pai contra mãe”, outro conto de Machado de Assis, mas bem poderia ter como mote “O caso da vara”. Mostrando as complexas relações que envolvem o assistencialismo no Brasil, o filme é uma história sobre imagem e cooptação – imagens que se criam e devem ser mantidas ao custo de ações cooptadas em uma intricada rede de relacionamentos. É o famoso “toma lá, dá cá” ou “uma mão lava a outra”. No constante jogo de interesses, alguém sempre acaba entregando a vara. Afinal, quanto vale uma “boa” ação?
O tema da responsabilidade social como embuste para geração de lucro é central. Empresas e organizações não-governamentais usam o disfarce do assistencialismo para ganhar dinheiro. Campanhas de auxílio a crianças carentes, doação de roupas e alimentos a moradores de rua, projetos implantados em comunidades desfavorecidas – todas elas ações que entram na pauta do politicamente correto e socialmente aplaudido, escondendo, porém, falcatruas e interesses bem menos nobres: superfaturamento por meio de doações, dedução de imposto de renda, lavagem de dinheiro, corrupção. Nesta grande encenação, o que vale é a imagem. O jogo das representações é sustentado por bem elaboradas campanhas de marketing que divulgam as boas ações e intenções das empresas e tentam convencer com imagens como a foto da madame socialmente engajada segurando a mão de crianças pobres. E sorrindo. Sempre. O sorriso – vale dizer, a imagem – é quem (res)guarda o simulacro da responsabilidade, generosidade e comprometimento social. No processo de legitimação da imagem, estes valores são apenas elementos que compõem o discurso do bem agir, tomado de empréstimo em lugar da ação propriamente dita. Mostrar que se faz é mais importante que fazer e, neste sentido, os meios de comunicação são usados e se deixam usar como veículos de cooptação, em que a aparência de realidade acaba tornando-se real e sendo aceita como tal. Dançando conforme a música do sistema, a informação desobriga-se de seu compromisso com a verdade. Mais uma vez, as varas são entregues.
Outro tema fortemente presente no filme é a questão do negro – objeto e alvo principal das ações assistencialistas – e os resquícios de escravidão em uma sociedade que se diz livre. Crônicas retiradas dos autos do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro são atualizadas. Relações escravocratas – reflexos de relações econômicas e sociais complexas – são reencarnadas em situações contemporâneas, mostrando que a máscara da liberdade é mais uma das imagens vendidas pela retórica da democracia. O recurso narrativo empregado é a transposição, do século XIX para a atualidade, das mesmas situações históricas, fazendo uso dos mesmos atores. O resultado é eficaz. E constrangedor. Casos como o do capitão-do-mato capturando a escrava fugida que acaba por abortar o filho, transforma-se na história de Candinho, recém-casado, à espera de um filho e desempregado, que se torna matador de aluguel para ganhar dinheiro. O capitão-do-mato moderno termina matando a única pessoa disposta a denunciar os desmandos das empresas “socialmente responsáveis” e tentar mudar alguma coisa, rompendo com o sistema de cooptação. Esta é a história de “Pai contra mãe”, e, nesta luta, a mãe que se recusa a entregar a vara não sai vitoriosa.

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