domingo, 30 de novembro de 2008

Crônica do anonimato

(A lição do olhar)

O uniforme azul e branco facilita a identificação. Podemos identificá-los, mas não os reconhecemos. Simplesmente porque não os conhecemos. Eles estão em quase todos os lugares, porém não os vemos. Falar com eles, apenas em caso de necessidade. O paradoxo é sensivelmente real: por mais onipresentes que sejam, eles tornam-se invisíveis, inexistentes. Parecem compor o cenário em que estão inseridos como figurantes, e perdem-se nele. Transformados em funções, ou melhor, vistos somente como funções, perdem um pouco de sua humanidade. Afinal, quem são os funcionários da universidade?
Existem os “clássicos”, conhecidos de todos, que são referência em seus pontos de atuação: o Marcílio e a Dona Terezinha, da biblioteca de Comunicação; a Helen, da biblioteca de Educação (para aqueles que a freqüentam); a Célia, da secretaria; a Beth, da sala dos professores; o Hugo, dos auditórios. Mas há, também, um exército de anônimos, reconhecidos apenas pela calça azul e a camisa branca (ou colete azul, no caso das mulheres). Como é mesmo o nome do rapaz que fica no laboratório? E da moça que nos atende quando a Célia não está na secretaria? E daquelas duas senhoras simpáticas – uma loira, a outra negra, as duas sempre sorridentes – que trabalham na biblioteca do primeiro andar? Além destes, ainda tem os funcionários que trabalham escondidos em salas em que nunca entramos. Muito raramente cruzamos com eles pelos corredores. Deles, sabemos menos ainda: nem nome, nem o que fazem.
Seja no caso dos conhecidos ou dos apenas reconhecíveis, nossa percepção é a mesma: eles não passam de funções. Ou simples uniformes. Será que eles, por sua vez, nos vêem apenas como uma massa indistinta e perturbadora de alunos? Massa de cá, exército de lá, e perdem-se os relacionamentos humanos. Pois não se pode dizer que haja relacionamento entre nós. O contato diário resume-se à troca de sorrisos e cumprimentos e ao pedido de auxílio, quando necessário. Mas o que sabemos deles? Qual é a sua história? Seus sonhos, suas frustrações? Afinal, quem são eles? Então, damo-nos conta, tristemente, de que talvez estas questões não nos preocupem ou sequer tenham suscitado nossa curiosidade. Limitamo-nos a aceitar sua condição de função e anonimato – assim como a nossa, de massa igualmente anônima – e esquecer sua humanidade.
Às vezes, peculiaridades de temperamento e personalidade vencem estas limitações. Alguns dos funcionários, com os quais sentimos uma proximidade maior, vão se revelando a nós, formando, aos poucos, o mosaico de quem são. A revelação, porém, acontece lentamente, a partir de conversas esparsas e breves – seria perigoso, talvez, romper a barreira do uniforme de modo súbito. A aproximação exige cautela e respeito aos papéis: eles, funcionários, nós, alunos. Mas a ocorrência, ainda que casual, de conversas mais pessoais, mostra que é possível nos relacionarmos como os seres humanos que somos.
Esta seria, talvez, uma boa oportunidade para exercitar esta aproximação. Poderia ter me aventurado a conversar com um dos funcionários desconhecidos e arriscar um perfil, mas preferi fazer uma crônica do anonimato. Continuo não sabendo quem são eles, quais são seus sonhos, o que os faz chorar ou sorrir. Mas posso dizer que, com um simples exercício do olhar, eles já não são apenas uniformes para mim.

domingo, 23 de novembro de 2008

Conversatório com Fabrício Carpinejar

Foi há duas semanas, mas acho que ainda vale o comentário.
Antes do Conversatório, eu estava lendo seu livro de crônicas
O amor esquece de começar. Leve, profundo, engraçado, poético. Com várias daquelas frases perfeitas pra se anotar num caderninho. Pois encontrar o Fabrício foi encontrar o autor daquele livro, o que parece um tanto óbvio mas não é. O que eu quero dizer é que ele é exatamente o que escreve. O jeito de falar (o sotaque gaúcho já pressuposto na escrita), os assuntos (amor, mulheres, filhos, família, relacionamentos, a escrita, a poesia), a graça, o humor, o lirismo, a veia subversiva descontruindo idéias banais. Ouvi-lo falar era o mesmo que ler seu livro.
Algumas de suas frases (do Conversatório, não do livro):

"Os livros nascem conversados."

"Ensinar é seduzir porque tu ensina pra passar o contrabando pelo afeto."

"Xícaras quebradas nunca serão roubadas." (história da avó dele)

"A escrita é um próprio rosto."

"É importante conhecer a chuva."

"Tu não escreve pra falar de ti, tu escreve pra sair de ti."

"O livro é saudade que a gente tem de alguém."

"(...) começa a escrever porque os principais livros da vida dele, que são pessoas, não foram escritos."

"Se eu não escrever, ninguém vai conhecer minha vó."

"A gente escreve depois de se suportar sozinho." (em relação aos blogs)

"É importante ser cafona no amor. Quem não for cafona, nunca será nobre."

"A poesia é meu espaço de desaforo."

"O exagero reequilibra."

"A crônica devolve a intimidade das coisas (...) A crônica é um efeito colateral da poesia."

"Poesia não é escolha, é temperamento. É jeito de reconhecer minha própria casa."

*
Para mais Carpinejar: http://www.carpinejar.blogspot.com/

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Itinerário (ou a crônica de um dia perfeito)

Estamos na Luz. Lu e eu. Luz. Algo bom de se dizer. É metrô, é trem, é pinacoteca, é estado de espírito. Início de jornada. O descuido na rua e a bronca carinhosa. Primeiros sinais de uma gentileza inesperada. Cedo demais. Os caminhos sem mapa. O arco-íris de concreto ao longe. Longe? Perto. A conspiração do universo. A intuição dos passos. A supresa em cada esquina. O pensamento e o desejo mais rápidos que a imagem que surgia como mágica. Edifício Martinelli. O outro também. Sol chuvoso. Avenida Júlio Prestes. Avenida Ipiranga! Cadê a São João? A vida vivida como música. Santa Ifigênia: a rua, o largo, a igreja. Viaduto do Chá e a pureza contagiante do ar impuro de São Paulo. Mosteiro de São Bento. A lição do silêncio e dos vitrais. Cachoeira de luz. As fotos proibidas. A tempo. O café Girondino. 25 de março: uma data, uma rua, uma festa. Carinho na cabeça ao virar a esquina. Arrepio de pele. Lojas árabes. Bolsas árabes, pulseiras árabes, doces árabes. Enfeites de Natal e a caixinha de música descoberta sem querer. Mercado Municipal. O templo. Simpatia em cada barraca. Banquete de cores, de cheiros, desejos. A sardela italiana, o queijo brasileiro. Damasco com chocolate. Salada de fruta. Pão com mortadela e a descoberta de si mesmo. Pessoas. Mais simpatia, mais gentileza. Avenida Senador Queirós. Bolo de goiaba. Chuva ensolarada. Caminho de volta. Luz mais perto ainda. Sala São Paulo. Os mistérios do som, os segredos da música. Museu da Resistência. DOI-CODI. História na parede de celas. Universidade Livre de Música. Corredores musicais. A música da janela. O céu de papel crepom. Museu da Língua Portuguesa. Machado de Assis. Paredes de luz e som. A palavra comunicar no jogo do labirinto. A surpresa por trás da tela de cinema. As palavras eram mar. As palavras choviam belezas no escuro, e a gente embaixo se molhando. O piano na estação Júlio Prestes. "Toque-me. Sou todo seu". Toco. A brincadeira em dedilhado, o jazzinho infantil arranhado. Volta pelo metrô. A rememoração do dia que ainda não terminou. Muitos risos. As histórias acompanhadas por um livro de fachada. "Onde estamos? Quem somos nós?", "Ana Rosa", entregou-se o livro. Fim de linha. Destino: a praia. Mais histórias e mais risos. Amanteigados e biscoitos de leite. A serra. O verde e a lembrança de verde.
A Lu dormindo. O céu em cor-de-rosa encerrando o dia. A paisagem familiar. Canal 1. O bafo quente de Santos. Fim de jornada. A plenitude à exaustão. Pés cansados, mas felizes.