sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

A melhor companhia

Ontem fiz uma coisa que há tempos não fazia: fui ao cinema sozinha. Vi "500 dias com ela". Mas este não é um texto sobre o filme, e sim, sobre ir ao cinema sozinha.
Muitas pessoas não conseguem, nem nos seus piores pesadelos, considerar a possibilidade, por mais remota que seja, de irem ao cinema sozinhas. Passar por uma experiência traumática como essa seria não apenas vivenciar a própria solidão, mas, mais importante e traumático ainda, expor essa solidão para outras pessoas. Só de imaginar a vergonha na sala de espera em meio a casais apaixonados, grupos de amigos, senhorinhas felizes e acompanhadas! Curtir solidão vendo filme sozinha em casa, tudo bem, mas em público?
São pessoas que realmente não conseguem ficar sozinhas. Precisam se apegar a pessoas, prazeres e até mesmo ideias para preencher o vazio que sentem. É o que geralmente fazemos quando somos acometidos pelo tédio e pela solidão. Livros, filmes, companhia... nada parece aplacar a angústia de sentir... nada! Quando estamos nesse estado, a sensação da solidão acompanhada, de estar só na multidão, é sintomática e devastadora.
Mas e se encontrarmos na solidão, neste estar só, o espaço e o tempo necessários para estarmos realmente em boa companhia? Sem escapes, sem fugas, transferências ou auto-enganação. Estar consigo mesmo. E só. Sem precisar de mais nada nem de mais ninguém. Só. Descobrindo o prazer de aprender "a dor e a delícia de ser o que é", como diria Caetano. E encontrar aquele lugar de bem-aventurança justamente no vazio.
Krishnamurti dá duras e boas lições sobre a solidão. "É necessário ficar só, conhecer esse estar só não induzido pelas circunstâncias, esse estar só que não é isolamento, esse estar só que é criatividade, condição na qual a mente já não busca a felicidade nem a virtude, nem cria resistência. A mente que está só é a única que pode encontrar - não a mente contaminada, corrompida pelas próprias experiências. Assim, talvez a solidão, de que todos temos consciência, possa, se soubermos como encará-la, abrir a porta para a realidade."
Ir ao cinema sozinha pode ser um bom exercício. Ontem senti essa plenitude do estar só de que fala Krishnamurti. Tudo bem que cheguei ao cinema atrasada, "perdi" toda a "emoção" da sala de espera e no escuro da sala de exibição, ninguém notou a minha chegada... sozinha. Mas, para minha surpresa, quando o filme acabou e as luzes se acenderam, percebi que havia outras pessoas também desacompanhadas, e uma mulher sentada a duas cadeiras de mim, sozinha, me sorriu. Não sei se o sorriso dizia simplesmente "que filme lindo!", ou "veja só: nós duas aqui, sozinhas, nos divertindo!", ou as duas coisas. Só sei que senti, naquele momento, após o êxtase da solidão plena, a alegria da solidão compartilhada.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

A graça do futebol

"No futebol, as sobras, a 'valorização' da posse de bola, o tempo produtivo e o tempo improdutivo, a catimba, o desperdício e a poupança, os 'olés', a impossibilidade de contabilização numérica ou gradual exaustiva, tudo faz parte do jogo. Em certos momentos, quando, por exemplo, uma bola cruza toda a extensão do gol desguarnecido depois de um toque precioso e preciso, ou quando um súbito 'chapéu' coroa inesperadamente um jogador que esboça uma reação já inútil no momento breve, o tempo se distende, como se durasse eternamente por um instante. O placar descreve e não descreve a partida, é 'justo' e 'injusto'. Ao contrário das artes em geral, a competência pode ser contabilizada porque se traduz em gols. Mas ao contrário dos outros esportes, a contabilização ná dá conta do acontecimento."

(Veneno Remédio - O futebol e o Brasil, José Miguel Wisnik)