quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

A poesia da vida real

Um antigo cajueiro, um par de luvas esquecido atrás de livros, uma borboleta amarela pelas ruas, um nadador no mar, uma manhã entre amantes. Qualquer assunto, por mais trivial ou corriqueiro que seja, pode se transformar em tema de crônica.
Mais que uma experiência ou verdade fundamental, a leitura de crônicas parece antes sugerir uma sensação, ou diferentes sensações que se seguem e que, no conjunto, criam uma espécie de empatia e formam uma imagem quase nítida daquele que escreve. A cumplicidade na banalidade poética do cotidiano rende um amigo. Um dos meus melhores amigos é o Rubem Braga.

Há algum tempo, vinha seguindo uma dieta - nada rígida, é verdade - de duas crônicas por dia. Lidas, em geral, depois do almoço e antes da sesta sagrada. A ideia era deixar que a sensação provocada pela leitura homeopaticamente prescrita e digerida pudesse me acompanhar ao longo do dia. Saborear cada texto lentamente, como toda boa crônica merece. Mas na última semana, num ímpeto de gula, devorei o livro inteiro. A sensação final e cristalizada de beleza da vida real, em sua realidade mais cotidiana e prosaica - e talvez por isso mais poética -, compensou a imprudência.

Cada início de crônica é uma promessa:

No centro do dia cinzento, no meio da banal viagem, e nesse momento em que a custo equilibramos todos os motivos de agir e de cruzar os braços, de insistir e desesperar, e ficamos quietos, neutros e presos ao mais medíocre equilíbrio - foi então que aconteceu. (Visão)

E o fim pode trazer uma revelação inesperada:

Ouvi-me, pois, insensatos; ouvi-me a mim e não a essa infame e horrenda serra que a vós e a mim tanto azucrina. Vamos para a praia. E se o proprietário vier, se o banqueiro vier, se o governo vier, e perguntar com ferocidade: "estais loucos?" - nós responderemos: "Não, senhores, não estamos loucos; estamos na praia jogando peteca". E eles recuarão, pálidos e contrafeitos. (Manifesto)

Entre o início e o fim, a beleza:

Houve um momento, aquele momento em que a carne se faz alma. (Às duas horas da tarde de domingo)

E que houve momentos perfeitos que passaram, mas não se perderam, porque ficaram em nossa vida; que a lembrança deles nos faz sentir maior a nossa solidão; mas que essa solidão ficou menos infeliz: que importa que uma estrela já esteja morta se ela ainda brilha no fundo de nossa noite e de nosso confuso sonho? (Despedida)

Deixo aqui um aperitivo:

A Palavra
(Rubem Braga)

Tanto que tenho falado, tanto que tenho escrito - como não imaginar que, sem querer, feri alguém? Às vezes sinto, numa pessoa que acabo de conhecer, uma hostilidade surda, ou uma reticência de mágoas. Imprudente ofício é este, de viver em voz alta.
Às vezes, também a gente tem o consolo de saber que alguma coisa que se disse por acaso ajudou alguém a se reconciliar consigo mesmo ou com a sua vida de cada dia; a sonhar um pouco, a sentir uma vontade de fazer alguma coisa boa.
Agora sei que outro dia eu disse uma palavra que fez bem a alguém. Nunca saberei que palavra foi; deve ter sido alguma frase espontânea e distraída que eu disse com naturalidade porque senti no momento - e depois esqueci.
Tenho uma amiga que certa vez ganhou um canário, e o canário não cantava. Deram-lhe receitas para fazer o canário cantar; que falasse com ele, cantarolasse, batesse alguma coisa ao piano; que pusesse a gaiola perto quando trabalhasse em sua máquina de costura; que arranjasse para lhe fazer companhia, algum tempo, outro canário cantador; até mesmo que ligasse o rádio um pouco alto durante uma transmissão de jogo de futebol... mas o canário não cantava.
Um dia a minha amiga estava sozinha em casa, distraída, e assobiou uma pequena frase melódica de Beethoven - e o canário começou a cantar alegremente. Haveria alguma secreta ligação entre a alma do velho artista morto e o pequeno pássaro cor de ouro?
Alguma coisa que eu disse distraído - talvez palavras de algum poeta antigo - foi despertar melodias esquecidas dentro da alma de alguém. Foi como se a gente soubesse que de repente, num reino muito distante, uma princesa muito triste tivesse sorrido. E isso fizesse bem ao coração do povo; iluminasse um pouco as suas pobres choupanas e as suas remotas esperanças.

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