domingo, 16 de outubro de 2011

A alma encantadora das ruas

"Para compreender a psicologia da rua não basta gozar-lhe as delícias como se goza o calor do sol e o lirismo do luar. É preciso ter espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e os nervos com um perpétuo desejo incompreensível, é preciso ser aquele que chamamos flâneur e praticar o mais interessante dos esportes – a arte de flanar. É fatigante o exercício?
(...) Que significa flanar? Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem. Flanar é ir por aí, de manhã, de dia, à noite, meter-se nas rodas da populaça, admirar o menino da gaitinha ali à esquina, seguir com os garotos o lutador do Cassino vestido de turco... 
(...) É vagabundagem? Talvez. Flanar é a distinção de perambular com inteligência. Nada como o inútil para ser artístico. Daí o desocupado flâneur ter sempre na mente dez mil coisas necessárias, imprescindíveis, que podem ficar eternamente adiadas... O flâneur é o bonhomme possuidor de uma alma igualitária e risonha, falando aos notáveis e aos humildes com doçura, porque de ambos conhece a face misteriosa e cada vez mais se convence da inutilidade da cólera e da necessidade do perdão.
(...) E de tanto ver que os outros quase não podem entrever, o flâneur reflete. As observações foram guardadas na placa sensível do cérebro; as frases, os ditos, as cenas vibram-lhe no cortical. Quando o flâneur deduz, ei-lo a concluir uma lei magnífica por ser para seu uso exclusivo, ei-lo a psicologar, ei-lo a pintar os pensamentos, a fisionomia, a alma das ruas. E é então que haveis de pasmar da futilidade do mundo e da inconcebível futilidade dos pedestres da poesia de observação..."

(A alma encantadora das ruas, João do Rio)