quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Crime e castigo

"Lembro-me também de que eu, no meu artigo, desenvolvia a idéia de que todos... digamos, por exemplo, os legisladores e os fundadores da humanidade, começando pelos mais antigos e continuando por Licurgo, Sólon, Maomé, Napoleão etc. etc., todos, desde o primeiro até o último, tinham sido criminosos, mais não fosse senão porque, ao promulgarem leis novas, aboliam as antigas, tidas por sagradas pela sociedade e pelos antepassados, e certamente que não se teriam detido perante o sangue, sempre que isso (derramado às vezes com toda a inocência e virtude, em defesa das velhas leis) pudesse ser-lhes útil. Também é significativo que a maior parte desses benfeitores e fundadores da humanidade fossem uns sanguinários, especialmente ferozes. Em resumo: eu concluía daqui que todos os indivíduos, não só os grandes, como também aqueles que se afastassem um pouco da vulgaridade, isto é, também aqueles que são capazes de dizer qualquer coisa de novo, teriam a obrigação, pela sua própria natureza, de serem infalivelmente criminosos... em maior ou menos grau, naturalmente. De outro modo, ser-lhes-ia difícil saírem da vulgaridade, e eles não podem conformar-se a ficar nela, até pela mesma razão da sua natureza e, a meu ver, têm até a obrigação de não se conformarem. Em resumo: como o senhor vê, até aqui, isto não tem nada de particularmente novo. Isto já se imprimiu e foi lido milhares de vezes. Pelo que diz respeito à minha distinção entre homens vulgares e extraordinários, concordo em que é um tanto arbitrária; mas eu não citava números exatos. Eu só tenho fé na minha ideia essencial, que é aquela que consiste em dizer concretamente que os indivíduos se dividem, segundo a lei da natureza, em duas categorias: a inferior (dos vulgares), isto é, se me permite a expressão, a material, que unicamente é proveitosa para a procriação da espécie, e a dos indivíduos que possuem o dom ou a inteligência para dizerem no seu meio uma palavra nova. É claro que as subdivisões são infinitas, mas os traços diferenciais de ambas as categorias são bem nítidos: a primeira categoria, ou seja, a matéria, falando em termos gerais, é formada por indivíduos conservadores por natureza, disciplinados, que vivem na obediência e gostam de viver nela. A meu ver têm a obrigação de ser obedientes, por ser esse o seu destino e não ter, de maneira nenhuma, para eles, nada de humilhante. A segunda categoria é composta por aqueles que infringem as leis, os destrutores e os propensos a sê-lo, a julgar pelas suas faculdades. Os crimes destes são, naturalmente, relativos e muito diferentes; na sua maior parte exigem, segundo os mais diversos métodos, a destruição do presente em nome de qualquer coisa de melhor. Mas se necessitarem, para bem da sua ideia, de saltar ainda que seja por cima de um cadáver, por cima do sangue, atendendo unicamente à ideia e ao seu conteúdo, repare bem. É só nesse sentido que eu falo no meu artigo do seu direito ao crime. (Lembre-se, o senhor, que partimos de uma questão jurídica.) Embora, no fim de contas, não haja razão nenhuma para se ficar demasiado assustado; quase nunca a massa lhes reconhece esse direito, e até os castiga e os manda enforcar (mais ou menos); e assim, com absoluta justiça, cumpre o seu destino conservador, o que não é obstáculo para que, nas gerações seguintes, essa mesma massa erga os castigos sobre pedestais e se incline diante deles (mais ou menos). A primeira categoria é sempre a verdadeira dominadora: a segunda é... a futura dominadora. Os primeiros conservam o mundo e multiplicam-no matematicamente; os segundos movem-no e conduzem para a sua finalidade. Tanto uns como outros têm perfeito direito de existir. Em resumo: para mim, todos têm o mesmo direito, e... vive la guerre éternelle!... até a nova Jerusalém, naturalmente..."

(Crime e castigo, F. Dostoiévski)

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