quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Manoel de Barros

Agora não quero saber mais nada, só quero aperfeiçoar o que não sei. 

VI
Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas leituras
não era a beleza das frases, mas a doença delas.
Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor, esse gosto esquisito.
Eu pensava que fosse um sujeito escaleno.
-Gostar de fazer defeitos na frase é muito saudável, o Padre me disse.
Ele fez um limpamento em meus receios.
O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença, pode muito
que você carregue para o resto da vida um certo gosto por nadas. . .
E se riu.
Você não é de bugre? - ele continuou.
Que sim, eu respondi.
Veja que bugre só pega por desvios, não anda em estradas -
Pois é nos desvios que encontra as melhores surpresas e os ariticuns maduros.
Há que apenas saber errar bem o seu idioma.
Esse Padre Ezequiel foi o meu primeiro professor de agramática.

XI
Bernardo é quase árvore.
Silêncio dele é tão alto que os passarinhos
ouvem de longe
E vêm pousar em seu ombro.
Seu olho renova as tardes.
Guarda num velho baú seus instrumentos de trabalho
1 abridor de amanhecer
1 prego que farfalha
1 encolhedor de rios - e
1 esticador de horizontes.
(Bernardo consegue esticar o horizonte usando 3
fios de teias de aranha. A coisa fica bem esticada.)
Bernardo desregula a natureza:
Seu olho aumenta o poente.
(Pode um homem enriquecer a natureza com a sua
incompletude?).

Auto-retrato Falado
Venho de um Cuiabá garimpo e de ruelas entortadas,
Meu pai teve uma venda de bananas no Beco da Marinha, onde nasci.
Me criei no Pantanal de Corumbá, entre bichos do chão,
pessoas humildes, aves, árvores e rios.
Aprecio viver em lugares decadentes por gosto de estar
entre pedras e lagartos.
Fazer o desprezível ser prezado é coisa que me apraz.
Já publiquei 10 livros de poesia; ao publicá-los me sinto
como que desonrado e fujo para o Pantanal onde sou
abençoado a garças.
Me procurei a vida inteira e não me achei - pelo que fui salvo.
Descobri que todos os caminhos levam a ignorância.
Não fui para a sarjeta porque herdei uma fazenda de gado. Os
bois me recriam.
Agora eu sou tão ocaso!
Estou na categoria de sofrer do moral, porque só faço coisas inúteis.
No meu morrer tem uma dor de árvore.

(Livro das Ignorãças)
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2.3 Eu queria crescer pra passarinho...

13.9 A mãe bateu no Mano Preto. Falou que eu não apanhava porque não dei motivo. Subi no pico do telhado para dar motivo. Aqui de cima a lua prateava. A mãe disse que aquilo não era motivo.

12.1 Choveu de noite até encostar em mim. O rio deve estar mais gordo. Escutei um perfume de sol nas águas.

1.3 As árvores me começam.

1.4 Uma violeta me pensou. Me encostei no azul de sua tarde.

10.4 Os patos prolongam meu olhar... Quando passam levando a tarde para longe eu acompanho...

22.4
Hoje completei 10 anos. Fabriquei um brinquedo com palavras. Minha mãe gostou. É assim:
De noite o silêncio estica os lírios.

3.
Não é por me gavar
mas eu não tenho esplendor.
Sou referente pra ferrugem
mais do que referente pra fulgor.
Trabalho arduamente para fazer o que é desnecessário.
O que presta não tem confirmação,
o que não presta, tem.
Não serei mais um pobre diabo que sofre de nobrezas.
Só as coisas rasteiras me celestam.
Eu tenho cacoete pra vadio.
As violetas me imensam.

8.
Nasci para administrar o à-toa
o em vão
o inútil.
Pertenço de fazer imagens.
Opero por semelhanças.
Retiro semelhanças de pessoas com árvores
de pessoas com rãs
de pessoas com pedras
etc etc.
Retiro semelhanças de árvores comigo.
Não tenho habilidade pra clarezas.
Preciso de obter sabedoria vegetal.
(Sabedoria vegetal é receber com naturalidade uma rã no talo.)
E quando esteja apropriado para pedra, terei também sabedoria mineral.

9. (...)
Quem acumula muita informação perde o condão de
adivinhar: divinare.

Os sabiás divinam.

10. É no ínfimo que eu vejo a exuberância.

11.
Todas as coisas inapropriadas ao abandono me religam
a Deus.
Senhor, eu tenho orgulho do imprestável!

(O abandono me protege.)

14.
O que não sei fazer desmancho em frases.

Eu fiz o nada aparecer.

(Represente que o homem é um poço escuro.
Aqui de cima não se vê nada.
Mas quando se chega ao fundo do poço já se pode ver
o nada.)

Perder o nada é um empobrecimento.

*
Para ter mais certezas tenho que me saber de imperfeições.
*
A inércia é meu ato principal.
*
Não saio de dentro de mim nem pra pescar.
*
Sabedoria pode ser que seja estar uma árvore.
*
Aonde eu não estou as palavras me acham.
*
Não gosto de palavra acostumada.
*
Não preciso do fim para chegar.

(Livro sobre o nada)
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Caso de Amor
(...) Eu estou imaginando que a estrada pensa que eu também sou como ela: uma coisa bem esquecida. Pode ser. Nem cachorro passa mais por nós. Mas eu ensino para ela como se deve comportar na solidão. Eu falo: deixe deixe meu amor, tudo vai acabar. Numa boa: a gente vai desaparecendo igual quando Carlitos vais desaparecendo no fim de uma estrada... Deixe, deixe, meu amor.

O Apanhador de Desperdícios
Uso a palavra  para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas.
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim esse atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso palavra para compor meus silêncios.

O Menino que Ganhou um Rio
Minha mãe me deu um rio.
Era dia de meu aniversário e ela não sabia
o que me presentear.
Fazia tempo que os mascates não passavam
naquele lugar esquecido.
Se o mascate passasse a minha mãe compraria
rapadura
Ou bolachinhas para me dar.
Mas como não passara o mascate, minha mãe me
deu um rio.
Era o mesmo rio que passava atrás de casa.
Eu estimei o presente mais do que fosse uma
rapadura do mascate.
Meu irmão ficou magoado porque ele gostava
do rio igual aos outros.
A mãe prometeu que no aniversáriod o meu
irmão
Ela iria dar uma árvore para ele.
Uma que fosse coberta de pássaros.
Eu bem ouvi a promessa que a mãe fizera ao
meu irmão
E achei legal.
Os pássaros ficavam durante o dia nas margens
do meu rio
E de noite eles iriam dormir na árvore do
meu irmão.
Meu irmão me provocava assim: a minha árvore
deu flores lindas em setembro.
E o seu rio não dá flores!
Eu respondia que a árvore dele não dava piraputanga.
Era verdade, mas o que nos unia demais eram
os banhos nus no rio entre pássaros.
Nesse ponto nossa vida era um afago!

Bocó
Quando o moço estava a catar caracóis e pedrinhas na beira do rio até duas horas da tarde, ali também Nhá Velina Cuê estava. A velha paraguaua de ver aquele moço a catar caracóis na beira do rio até duas horas da tarde, balançou a cabeça de um lado para o outro ao gesto de quem estivesse com pena do moço, e disse a palavra bocó. O moço ouviu a palavra bocó e foi para casa correndo a ver nos seus trinta e dois dicionários que coisa era bocó. Achou cerca de nove expressões que sugeriam símiles a tonto. E se riu de gostar. E separou para ele os nove símiles. Tais: Bocó é sempre alguém acrescentado de criança. Bocó é uma exceção de árvore. Bocó é um que gosta de conversar bobagens profundas com as águas. Bocó é aquele que fala sempre com sotaque das suas origens. É sempre alguém obscuro de mosca. É alguém que constrói sua casa com pouco cisco. É um que descobriu que as tardes fazem parte de haver beleza nos pássaros. Bocó é aquele que olhando para o chão enxerga um verme sendo-o. Bocó é uma espécie de sânie com alvoradas. Foi o que o moço colheu em seus trinta e dois dicionários. E ele se estimou.
(Memórias inventadas)
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