sábado, 14 de janeiro de 2012

O que Sócrates diria a Woody Allen

Em O que Sócrates diria a Woody Allen, Juan Antonio Rivera apresenta uma maneira interessante de se pensar algumas questões filosóficas a partir do cinema, e, ao mesmo tempo, de (re-)ver alguns filmes à luz da filosofia: 

Este livro pretende ser simultaneamente uma introdução à filosofia para amantes do cinema e uma introdução ao cinema para amantes da filosofia (filofilósofos). Quanto ao primeiro, os aficcionados ao cinema encontrarão aqui algumas de seus filmes favoritos, peças do calibre de Casablanca, Cidadão Kane ou A lei do silêncio, para dar alguns exemplos. Também encontrarão - talvez com um pouco de inquietude ou de suspeita - obras menos afamadas, material menos distinto, como Um homem de família, a cujo comentário, além disso, se dedica uma boa quantidadde de papel. Que não se estranhe: o critério para selecionar um filme foi, em primeiro lugar, a força com que nele fica ilustrada uma determinada questão filosófica, e só depois levei em conta sua qualidade estética.
(...) Embora nas seguintes páginas entram em cena alguns dos filósofos clássicos (Sócrates, Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, Kant ou Nietzsche), também comparecem outros mais atuais e que provavelmente, com o correr do tempo, passem a engrossar a lista dos clássicos: figuras como John Rawl, Robert Nozick ou Jon Elster. Boa parte das matérias tratadas são também as indispensáveis e perenes da filosofia: o amor, a morte, a felicidade, a racionalidade, a maldade, a falta de vontade, o acaso... Mas outras podem ser insólitas até para os mais versados em filosofia: os subprodutos, a formação do gosto moral, a tentação do bem (muito menos conhecida que a tentação do mal), o apetite fáustico ou as dificuldades da escolha racional.

Algumas questões

O que é gosto moral?
Acabo de usar esta expressão "gosto moral", e é o momento de esclarecer o que quero dizer com ela. Suponhamos que digo que gosto do cinema de Ernst Lubitsch; com isso estou me referindo à minha predileção estética por seus filmes, expressando minha relação de fervor por elas. Por outro lado, suponhamos que digo, além disso, que gosto de gostar do cinema de Lubitsch. Aqui estou afirmando algo significamente distinto: não estou manifestando minha admiração estética pelas realizações do diretor alemão (...); estou antes expressando que, ao menos neste ponto, minha relação comigo mesmo é boa, que estou encantado de ter me conhecido cinematograficamente, que o que eu gostaria de ser coincide com o que sou no que diz respeito aos filmes de Lubitsch. Veremos mais à frente que isso não é sempre assim, ou que pode ser assim em uns terrenos e não em outros. Mas no momento atente que o gosto moral está integrado por metapreferencias; não tanto pelo que eu gosto, mas pelo que eu gosto de gostar. Posso gostar de gostar de muitas coisas diferentes: não fumar, apreciar bons vinhos, a música clássica, o romance do século XIX, ser um entomólogo de renome ou chegar pontualmente nos compromissos. Algumas destas metapreferencias podem se refletir com plenitude na minha conduta efetiva; outras de maneira mais desvaída, e outras, enfim, simplesmente serem desmentidas e socavadas pela minha maneira habitual de proceder. Mas, seja qual for o grau de cumprimento real das minhas metapreferencias, o que é certo é que o conjunto delas configura minha autoimagem favorita, o que eu queria ser ou não ser (para voltar a lembrar o mestre Lubitsch).

O mito da autenticidade pessoal
A fita de Brett Raner não apenas mostra a possibilidade de efeitos borboleta intraindividuais (ou verticais) na árvore de decisão de Jack: como uma flutuação entre duas opções em certo momento da existência tem repercussões desproporcionadas a longo prazo. Também ensina algo mais sutil: a maneira em que, passo a passo, teria mudado o perfil moral desejado de Jack; como, se tivesse ficado em Nova Jersey, a metapreferencia de ser pai de família e ter uma vida caseira teria acabado triunfando sobre a metapreferencia do êxito profissional.
(...) Em Um homem de família se observa o jogo característico do acaso e da racionalidade na construção progressiva de uma vida concreta, e como as variações (mesmo insignificantes) nos componentes específicos desse acaso e dessa racionalidade são muito capazes de conseguir com que a vida do mesmo indivíduo tome rumos muito díspares. Voltamos então à pergunta: qual é o Jack autêntico? A resposta é que não existe tal coisa como um Jack autêntico. A crença na autenticiadade pessoal é o resultado de se supervalorizar o peso da racionalidade nas nossas vidas, de dar muita importância à persuasão ilusória de que as controlamos e encaminhamos em direção ao que queremos ser. Também é o resultado da falsa crença de que há somente uma coisa que queremos ser.

Manter o rumo fixo?
As descobertas, no sentido em que uso esta palavra, se diferenciam da busca. Supor que nossa existência discorre em um terreno perfeitamente plano e consiste sobretudo em buscar as vias que melhor nos aproximem a umas metas que ficaram esclarecidas de uma vez por todas é algo própio de uma mentalidade racionalista ao extremo. Ao contrário, reconhecer que a vida se desenvolve em um terreno montanhoso, em que nem todas as paragens são abarcadas ao primeiro golpe de vista, e no qual - ao caminhar pelas asperezas desta paisagem irregular e iacidentada - é possível realizar descobertas, significa começar a admitir que o curso dos acontecimentos futuros pode nos surpreender, e que nem todas as surpresas têm que ser desagradáveis.
As descobertas são acontecimentos ao mesmo tempo fortuitos e colaterais (subproductos). Para distingui-los da busca, usemos um exemplo simples: estamos buscando em um dicionário uma palavra cujo significado desconhecemos, e que sabemos que desconhecemos ("emetropia", digamos), e, enquanto fazemos isso, descobrimos o significado de outra palavra próxima ("emetologia"), que nem sequer sabíamos que existia e sobre a qual fortuitamente colocamos a vista. Ignorávamos o significado de "emetologia" tanto como o de "emetropia", mas além disso (e aqui reside a diferença), ignorávamos que ignorávamos. Quando buscávamos "emetropia", partíamos de uma ignorância conhecida (no que pese o oxímoro), que é a que além do mais estimulava nossa busca; no caso de "emetologia", ao contrário, o que há como ponto de partida é uma metaignorância, um não saber que não se sabe, de modo que aqui não tínhamos incentivo algum para empreender uma busca racional de nada: simplesmente é impossível buscar o que não se sabe que não se sabe. De maneira que não há forma iracional de fazer descobertas. As descobertas, como subprodutos que são, surgem quando não se busca ou quando se está buscando outra coisa. Além disso, as descobertas chegam a nós transportadas no ar pelo acaso, e só se trata - e não é pouca coisa - de estar alerta para perceber sua fugitiva presença.
No processo da busca, por outro lado, se produz um lapso temporal entre a consciência da ignorância e a supressão dela. (...) Ao contrário, quando acontece uma descoberta, a ignorância se dissipa enquanto percebos que existia; no mesmo instante em que se produz o reconhecimento da ignorância, se produz também seu desvanecimento. (...) Para que seja possível a descoberta, deve existir uma ignorância desconhecida de algo, e quando esse algo é notado, produz uma sacudida de surpresa que está caracteristicamente ausente no processo da busca: não contávamos com aquilo, não havia entrado em nossos cálculos; em outras palavras, o que aconteceu, aconteceu à margem de nossas faculdades racionais. Mas isso não significa que não seja valioso; antes tende a ser o contrário. Lembre-se do que dizia Elster: as coisas mais importantes na vida são essencialmente subprodutos.

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