terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Sem melodia

Há pessoas nas quais um constante repousar em si mesmas e uma harmoniosa disposição das faculdades são tão próprios, que lhes repugna qualquer atividade dirigida para um fim. Eles semelham uma música que consiste apenas em acordes harmônicos sustentados por longo tempo, sem mostrar sequer o início de um movimento melódico articulado. Toda movimentação vinda de fora serve apenas para dar imediatamente a seu barco um novo equilíbrio, no lago da consonância harmônica. Em geral as pessoas modernas ficam muito impacientes, ao se defrontar com essas naturezas que nada se tornam, sem que delas se possa dizer que nada são. Mas há estados de espírito em que a sua visão desperta a pergunta inusitada: para que melodia, afinal? Por que não nos basta que a vida se espelhe quietamente num lago profundo? - A Idade Média era mais rica em tais naturezas do que o nosso tempo. Como é raro ainda encontrarmos alguém capaz de seguir vivendo de maneira pacífica e alegre consigo também no torvelinho, dizendo a si mesmo as palavras de Goethe: "O melhor é a calma profunda em que diante do mundo eu vivo e cresço, e adquiro o que não me podem tirar com o fogo e com a espada".

(Humano, demasiado humano, Friedrich Nietzsche)


quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

O silêncio da Centre Court

“O que chama a atenção quando se joga na quadra central de Wimbledon é o silêncio.  Você bate a bola contra o gramado e não se ouve nenhum som; lança-a ao ar para sacar; golpeia e escuta o eco do golpe. E depois disso, o eco de cada golpe posterior, os seus e os do adversário.  Clac... clac; clac... clac. A grama bem cortada, a história do lugar, a entrada do estádio, o uniforme branco dos jogadores, a multidão respeitosamente calada, a tradição venerável – não há um único anúncio publicitário –, tudo se combina para você se fechar e isolar do mundo exterior. Esta sensação me faz bem; esse silêncio de catedral que reina na Centre Court convém ao meu jogo. Porque em uma partida de tênis, a batalha mais amarga que enfrento é com as vozes que ressoam dentro da minha cabeça: você quer silenciar tudo dentro da mente, eliminar tudo menos a competição, quer concentrar cada átomo do seu ser no ponto que está jogando. Se cometi um erro no ponto anterior, esqueço; se se insinua no fundo de minha cabeça a ideia da vitória, a reprimo.
O silêncio da Centre Court se rompe quando termina a luta pelo ponto. Se foi um bom ponto – os espectadores de Wimbledon conhecem a diferença –, explode o clamor: aplausos, aclamações, gente que grita o seu nome. Escuto, mas é como se viesse de um lugar distante. Não sou consciente de que tem quinze mil pessoas na expectativa no recinto, seguindo com o olhar cada movimento meu e do meu rival. Estou tão concentrado que não tomo conhecimento – não como agora quando recordo a final de 2008 contra Roger Federer, a maior partida da minha vida – de que há milhões de pessoas em todo o mundo me olhando.”

“Poderia se pensar que, depois de golpear milhões e milhões de bolas, devo saber de memória os golpes básicos e que dar um golpe certeiro, limpo e seguro, é fácil, mas não é assim. Não apenas porque cada dia a gente levanta com um ânimo diferente, mas porque cada golpe é distinto; cada um é único. Desde  o momento em que a bola se põe em movimento, corre em sua direção descrevendo um número infinito de ângulos possíveis e uma quantidade infinita de velocidades possíveis; pode chegar com topspin ou com efeito retrocesso – em ambos os casos se trata de efeitos de rotação –, em trajetória rasante ou alta. As diferenças podem ser mínimas, microscópicas, mas o mesmo pode-se dizer das variantes dos movimentos do corpo (ombros, cotovelos, pulsos, quadris, tornozelos, joelhos) quando se golpeia a bola. Além disso, intervêm muitos outros fatores: o clima, a superfície, o rival. Nenhuma bola é igual a outra; nenhum golpe é idêntico a outro. Assim, cada vez que você se coloca numa posição para dar um golpe, tem que calcular em uma fração de segundo a trajetória e velocidade da bola e em seguida  tomar uma decisão também muito rápida sobre como, com que força e até onde devolvê-la. E tem que fazer uma e outra vez, em geral cinquenta vezes num só game, quinze vezes em vinte segundos, em rachas contínuos durante mais de duas ou três, quatro horas, e todo esse tempo correndo com os nervos em tensão. Quando a coordenação é correta e o ritmo flui, vêm as boas sensações, você se sente mais capacitado para levar a cabo a façanha biológica e mental de golpear a bola corretamente com o centro da raquete, apontando com acerto, com força e sob uma pressão mental imensa, um vez atrás da outra. Se há algo de não tenho a menor dúvida é de que quanto mais se treina, melhores são as suas sensações. O tênis, mais que muitos outros esportes, é um exercício mental. O jogador que tem essas boas sensações quase todos os dias, o que consegue isolar-se melhor de seus medos e altos e baixos psicológicos que gera inevitavelmente uma competição, é o que termina sendo o número um do mundo. Tal era a meta que me havia fixado durante os três pacientes anos em que fui segundo, atrás de Federer, e que estaria muito perto de alcançar se ganhasse a final de Wimbledon de 2008.”

Estes trechos são do primeiro capítulo de Rafa, minha história, escrita pelo próprio Rafael Nadal com o jornalista John Carlin (mesmo autor de O fator humano: Nelson Mandela e o jogo que salvou uma nação, livro que ganhou versão cinematográfica com Invictus, de Clint Eastwood). 
O universo físico e mental do tênis exposto de maneira fascinante. A cabeça de um tenista revelada no ponto a ponto. O livro traz a vida e a trajetória profissional de um dos maiores jogadores da história do tênis contadas a partir da final de Wimbledon de 2008, contra Roger Federer, considerada por muitos a melhor partida de tênis de todos os tempos.