segunda-feira, 23 de abril de 2012

Ser transparente

"Que vocês consigam não segurar o choro quando o corpo quer chorar, não esconder a gargalhada ou a piada mais inútil quando o lábio quer sorrir e que não se tornem seres tão mascaradamente invencíveis. Tem vezes que é melhor  perder a batalha do que continuar com seres que lutam com os olhos fechados e vivem contaminados por seus insetos interiores. É preferível explodir em doçura do que acumular escudos e insatisfações. Perder a luta pode ser ganhar a paz. E com bandeira branca os dias se tornam mais limpos e leves para escrevermos a nossa história."

(Ivan De Stefano, Vire o Verso)

domingo, 22 de abril de 2012

Sete anos no Tibet

Primeira entrevista com Kundun

Eu voltava à cidade, deixando o cavalo ir passo a passo; e remoia essas ideias. Chegara quase aos arredores de Lhasa, quando me alcançou, esbaforido, um soldado da guarda do corpo. Procuravam-me, em toda a cidade — disse-me ele — e eu tinha de voltar imediatamente ao Palácio de Verão. O meu primeiro pensamento foi que a instalação do cineminha não funcionasse; porque a hipótese do rei, ainda sob tutela, se sobrepor a todas as convenções e mandar-me chamar parecia-me absurda. Dei volta, no mesmo instante e, pouco depois, estava no Norbulingka já então silencioso e sossegado. À porta do jardim esperavam-me alguns monges. Mal me avistaram, puseram-se a pestanejar furiosamente, indicando-me a entrada do jardim interior. Por mais vezes que houvesse passado ali, durante o meu trabalho, nesse momento a idéia de transpor aquele limiar causava-me uma sensação estranha. Nisso, Lobsang Samten veio receber-me; cochichou-me alguma coisa ao ouvido e meteu-me na mão um laço branco. Já não havia dúvida: seu irmão queria ver-me.
Dirigi-me logo para a câmara de projeção. Antes que eu pudesse entrar, puxaram de dentro a porta e eu vi-me diante do Buda vivo. Apesar da surpresa, curvei-me profundamente e apresentei o meu laço branco. Ele tomou-o na mão esquerda e benzeu-me com um gesto impulsivo da direita, um gesto que não se parecia com a cerimoniosa imposição das mãos; dir-se-ia antes a expressão impetuosa do estado de ânimo duma criança que afinal consegue impor a sua vontade. Na sala, aguardavam-me, de cabeça baixa, três abades: os três homens de confiança do rei-deus. Eu os conhecia bem; não vieram receber-me, e não me escapou a  frieza com que responderam ao meu cumprimento. Não lhes agradava, naturalmente aquela intrusão nos seus domínios; contudo, nunca ousariam contrariar abertamente o Dalai Lama.
O jovem soberano mostrou-se, pois, tanto mais cordial. Estava radiante; e foi largando as perguntas, uma atrás da outra. Acolhia-me, como um ser humano que, anos a fio, meditou sozinho vários problemas e tem finalmente com quem falar, alguém que ao mesmo tempo responda a tudo. Não me dava tempo para pesar as respostas. Arrastou-me logo para o projetor; queria passar um filme que o interessava desde muito tempo: um documentário da capitulação japonesa. Mandara os abades à sala de espetáculos; eles seriam o público.
(...)
Atravessei o jardim deserto, puxei o ferrolho do largo portão, mal acreditando que estivera quase cinco horas conversando com o rei-deus do país dos Lamas. Um jardineiro fechou o portão atrás de mim; e a guarda — que, entretanto, mudara várias vezes — apresentou-me armas, um tanto intrigada. Pus-me em sela e tomei lentamente o caminho de Lhasa. Não fosse o embrulhinho dos bolos, que me ficara na mão, eu pensaria que fora tudo um sonho. Qual dos meus amigos me prestaria crédito, se eu lhe contasse que passara horas, dialogando a sós com o Buda vivo? Qualquer deles me responderia apenas com um sorriso de piedade, dizendo consigo: "Pobre doido!"

Amigo e mestre do Dalai Lama

Foi para mim verdadeira felicidade a bela missão que se me ofereceu.
Sim, transmitir a esse menino inteligente a ciência e os conhecimentos do mundo afigurava-se-me uma função realmente valiosa.
Nessa mesma noite, procurei revistas que tratassem pormenorizadamente da construção dos caças a jato, assunto em que me vira várias vezes em apuros, na entrevista com o Dalai Lama, e que prometera explicar, na próxima vez, baseando-me em diagramas. Mais tarde, tive de preparar a matéria sobre a qual versaria o nosso diálogo; desejava sistematizar um pouco a avidez de saber do jovem rei. Muitas vezes, o meu plano gorava, porque ele formulava perguntas que nos conduziam a setores muito diferentes; não me restava então senão responder e explicar, conforme podia. Em relação à bomba atômica, por exemplo, tive de explicar os elementos, o que acarretou uma preleção sobre os metais. Para estes, não havia denominações em idioma tibetano; tive, pois, de dar muitos pormenores e, dentro em pouco, as perguntas caíram em cima de mim como uma avalanche.
Assim comecei uma nova vida em Lhasa. A minha existência passou a ter uma finalidade; e eu me livrei da insatisfação, do sentimento de não viver completamente. Não abandonei as minhas ocupações anteriores; continuei a colecionar notícias, a desenhar mapas. Mas os dias me pareciam demasiado curtos e, não raro, eu trabalhava até alta noite. Negligenciava as diversões, os passatempos, porque precisava dispor de tempo, quando o Dalai Lama me mandava chamar. Às reuniões dos meus amigos eu já não chegava de manhã, segundo o costume; só aparecia às últimas horas da tarde. Mas isso não me doía como uma renúncia; eu vivia muito feliz, na consciência de haver encontrado um objetivo. As horas, que passava com o meu régio discípulo, eram muitas vezes tão instrutivas para mim como para ele. Eu ia adquirindo um grande conhecimento da história do Tibete e da doutrina de Buda, setores em que a cultura do Dalai Lama era profunda. Mantínhamos freqüentemente, horas a fio, debates religiosos; e ele estava plenamente convencido de que me converteria ao budismo. Dizia-me que, justamente então, se entregava ao estudo de obras de antiquíssima sabedoria sobre os vários aspectos da separação da alma do corpo. Efetivamente, a história do Tibete menciona muitos santos que tinham o dom de fazer o seu espírito agir a centenas de milhas de distância, enquanto o seu corpo permanecia mergulhado em profunda meditação. O jovem Dalai Lama acreditava que, graças à sua fé e com o auxílio dos ritos prescritos, poderia atuar em localidades distantes, como por exemplo Samye. Quando atingisse esse ponto, mandar-me-ia para lá e, de Lhasa, dirigiria as minhas ações. Lembro-me de que eu me ria e respondia: "Sim, Kundun; quando fizeres isso, eu me tornarei budista".

(Sete anos no Tibet, Heinrich Harrer)

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Quero ser Adélia

E eu não sabia que minha história 
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.
(Carlos Drummond de Andrade)

"É muito difícil a pessoa se dar conta de que todos nós, artistas ou não, pessoas pobres ou ricas, nobres ou plebeias, só temos o cotidiano. E o cotidiano de todo mundo é absolutamente ordinário. Ele não é extraordinário. (...) A cada um de nós cabe a vida comum, o cotidiano. E eu tenho absoluta convicção que é atrás, que é através do cotidiano que se revelam a metafísica, a beleza.
(...) A gente quer uma vida heróica. Nós todos aspiramos a uma vida heróica. E fala: 'Deus me livre dessa vidinha minha, uma vidinha sem nenhum encanto'. (...) O cotidiano é na poeira, e para todos nós. E o mais bacana que tem é a gente tirar o nosso heróico, o nosso heroísmo deste cotidiano. (...) O nosso heroísmo é aqui, é no pequenininho, é  naquela paciência impossível de ter que eu tenho que ter. Fala: 'Deus me livre lidar com esse doente, com isso, com aquilo. Eu queria viver como...'. E você bota um personagem bem famoso. O personagem não existe. Caiamos na real. Bonita é a nossa vida.
(...) Admirar-se de um bezerro de duas cabeças, qualquer débil mental se admira. Mas admirar-se do que é natural, só quem tá cheio do Espírito Santo. É o outro olhar, é a sensibilidade. E o mundo é magnífico. É bom demais estar vivo, é bom demais. E eu quero essa vidinha. Essa vidinha. Essa é que é a boa.  Com todas as chaturinhas dela, as coisas difíceis. Mas é maravilhoso, porque quando você cai nesse lugar aí, você aceita a sua vida. Então você não sai mais à procura de heroísmo extraordinário. (...) Nós todos queremos que a nossa vida, o nosso currículo, tenha um ato heróico, e às vezes o ato heróico de cada vida é o mais anônimo, o mais silencioso, só Deus sabe."

Entrevista com a poeta Adélia Prado no programa Sempre um Papo:



Impressionista
Uma ocasião,
meu pai pintou a casa toda
de alaranjado brilhante.
Por muito tempo moramos numa casa,
como ele mesmo dizia,
constantemente amanhecendo.

Parâmetro
Deus é mais belo que eu.
E não é jovem.
Isto sim, é consolo.

Poema Começado no Fim
Um corpo quer outro corpo.
Uma alma quer outra alma e seu corpo.
Este excesso de realidade me confunde.
Jonathan falando:
parece que estou num filme.
Se eu lhe dissesse você é estúpido
ele diria sou mesmo.
Se ele dissesse vamos comigo ao inferno passear
eu iria.
As casas baixas, as pessoas pobres,
e o sol da tarde,
imaginai o que era o sol da tarde
sobre a nossa fragilidade.
Vinha com Jonathan
pela rua mais torta da cidade.
O Caminho do Céu.

Exausto
Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o sono profundo das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.

Casamento 
Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.

O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

Explicação de poesia sem ninguém pedir
Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica,
mas atravessa a noite, a madrugada, o dia,
atravessou minha vida,
virou só sentimento.

Ensinamento
Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
"Coitado, até essa hora no serviço pesado".
Arrumou pão e café , deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.

terça-feira, 10 de abril de 2012

Medianeras

"Tenho esse livro desde os 14 anos e é, com o perdão dos grandes escritores, o livro da minha vida. É a origem da minha fobia de multidões e criou em mim uma angústia existencial particular. Ele representa, de um jeito dramático, a angústia de saber que sou alguém perdido entre milhões. Os anos passaram, e ficou uma página sem resolver. Wally na cidade. Eu o encontrei no shopping, no aeroporto e na praia, mas na cidade, não o encontro. Sei que o nervosismo cega, mas não consigo achar. Então me pergunto: se, mesmo sabendo quem eu procuro, não consigo encontrar, como vou encontrar quem eu procuro se nem sei como é?" (Mariana, personagem de Medianeras)